domingo, 13 de maio de 2012

31. Uma (des)construção do Irã: discursos e estereótipos


ENSAIO
Após visitar o Irã, pesquisadores descrevem, no texto a seguir, o contraste entre a realidade do país dos aiatolás – “surpreendente em vários sentidos” – e o que a mídia difunde sobre ele
DANIEL MARCOLINO E FERDINANDO MARTINS
Especial para o Jornal da USP

A ameaça de ofensiva militar israelense sobre centros de pesquisa nuclear e notícias de censura e violação dos direitos humanos colocam a República Islâmica do Irã no centro do noticiário internacional. O tom é, em geral, condenatório e eivado de preconceitos. Na via contrária, o relato de pesquisadores, diplomatas e jornalistas que lá moraram falam de um país moderno, com uma vida social efervescente e muitas opções de cultura e lazer. Para investigar qual das imagens mais se aproxima do Irã real, é preciso, pois, desconstruir discursividades, tendo como objeto o plano ideológico a partir das quais elas foram construídas. Trata-se, portanto, de colocar esses discursos na ordem histórica, revelando interesses econômicos e estratégicos na manutenção do estereótipo de um Irã arcaico, fundamentalista e rural.

Em 1872, o xá Nasir-Al-Din concedeu direitos exclusivos ao empresário alemão de origem judia Paul Julius Reuter de comandar as indústrias do país. A concessão se estendia à criação de agências de notícias e de instituições financeiras. Nos anos seguintes, outorgou o direito de os ingleses explorarem o petróleo, bem como também de abrir bancos. Em 1891, com a economia arrasada, o xá vende a indústria nacional de tabaco ao governo britânico, o que levou uma representativa parte da população a promover protestos, parando de fumar.


O empobrecimento crescente da população motivaria a revolução constitucionalista iniciada em 1905, que forçou a monarquia a ceder direitos. Mesmo assim, persistiu o favorecimento estrangeiro em detrimento do Irã. Mozaffar ad-Din, filho e sucessor de Nasir-Al-Din, daria continuidade à política do pai, aumentando inclusive o poderio dos russos e ingleses, concedendo a estes o direito exclusivo de procurar e explorar o petróleo em solo iraniano. A partir de 1907, o Irã estaria dividido entre os russos, que exerciam o domínio numa extensa parte norte do país, e os ingleses, no sul. O Estado iraniano propriamente dito ficou espremido no centro.

Ocidentalização – Sob o regime dos Pahlevi, o Irã viveu um processo crescente de ocidentalização, que pregava a liquidação de costumes persas e muçulmanos, já então considerados pelos diplomatas estadunidenses e ingleses como retrógrados. Tal política era insensível a várias questões culturais locais. Proibiu, por exemplo, o uso do véu islâmico em público, levando várias mulheres a não sair de casa durante anos. Nos cinemas, predominavam massivamente filmes hollywoodianos ou inspirados em sua estética comercial. Promovia-se, a qualquer custo, uma sociedade de consumo americanizada.
Dentre alguns excessos dessa monarquia vale destacar a importação de carros, sem que houvesse estradas e sinalizações de trânsito, bem como a compra de uma frota inteira de 30 aviões que mesmo seu fabricante, os Estados Unidos, não podia manter. A biblioteca de Reza Pahlevi, hoje aberta para visitação pública no bairro de Niavaran, norte de Teerã, exibe quadros de Picasso e da pop arte e um exemplar autografado por Walt Disney de Cinderela, entre outras excentricidades – incluindo um telefone de ouro.
Outro excesso foram as comemorações dos 2.500 anos da Pérsia, uma fausta festa no deserto em 1971, com pratos e talheres banhados a ouro, enquanto o resto do país vivia miseravelmente. A expectativa de vida era inferior a 50 anos e as taxas de mortalidade infantil eram elevadas o suficiente para indicar a falta de saneamento e cuidados básicos de saúde. A ocidentalização, porém, não era de todo avessa ao islamismo. Tratava-se, no discurso da época, da união dos tementes a Deus (católicos, protestantes, judeus e muçulmanos) na promoção de uma atmosfera contra a ateia União Soviética. Em época de Guerra Fria, a religião contava como arma ideológica.

Imagens do Irã: para os visitantes, país se mostra mais moderno, aberto e culto do que sugere a mídia ocidental
O curto governo democrático do primeiro-ministro Mohammad Mossadegh (1951-1953) gerou a ira dos Estados Unidos e da Inglaterra, pois promovia mudanças importantes no rumo da economia e da política, como a estatização da Anglo-Persian Oil Company. Em uma ação arquitetada pela CIA, Mossadegh foi derrubado e Reza Pahlevi, então afastado, reconduzido ao poder. Reacende-se, com isso, o nacionalismo iraniano, que apresentaria sua manifestação maior na Revolução de 1979.
Com a revolução, os valores se invertem e há uma mudança significativa no discurso. Em larga medida, a precipitação do governo dos Estados Unidos ao incentivar o Iraque a invadir o Irã condicionou os rumos da revolução, ao favorecer que as lideranças religiosas se fortalecessem no poder, amputando do processo os comunistas, os intelectuais e outros defensores do fim da era Pahlevi. A religião passou a ser um entrave, sobretudo por legitimar a dominação xiita (grupos minoritários entre os muçulmanos, mas predominantes no Irã).
Uma cena do cotidiano no Irã
A adoção de procedimentos de defesa, como a tomada da Embaixada dos Estados Unidos (onde funcionava um escritório da CIA) e a prisão de diplomatas por 444 dias, favoreceram a criação e propagação do estereótipo do iraniano fundamentalista, belicoso, avesso ao progresso.
Omissões – A construção do discurso condenatório sobre o Irã é feita com ocultamentos. Oculta-se o processo histórico acima apresentado, pois revelaria a usurpação do Irã a que ele tem sido submetido pelas potências do Ocidente. Ocultam-se também os aspectos positivos do país e evitam-se comparações que colocariam o próprio discurso em xeque. Nesse sentido, o presidente Mahmoud Ahmadinejad lembra que a mídia ocidental nada fala sobre 53 mulheres condenadas à morte nos Estados Unidos ou o uso de armas químicas no Iraque pelo exército israelense. Essa mesma mídia mostra mapas de usinas nucleares no Irã, mas omite o fato de que seus vizinhos Rússia, Paquistão, Índia e Israel possuem arsenal nuclear. Muito menos que Israel, diferente do Irã, não é signatário do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares e, por isso, suas instalações não são inspecionadas por perícia internacional.
Exposição de livro autografado por Walt Disney: "um país surpreendente em vários sentidos"
Ao mesmo tempo, erige-se a imagem dos Estados Unidos como arautos da democracia e dos direitos humanos, diluindo como “acidente” os abusos em Guantánamo, Abu Ghraib e o recente massacre de 17 afegãos por um soldado norte-americano e ocultando os desmandos colonialistas impetrados pelos estadunidenses ao longo do século 20. Por esses motivos, o cineasta Abbas Kiarostami se recusa a falar de censura no Irã com jornalistas ocidentais, pois, segundo ele, parte-se do pressuposto de que não existe censura naqueles países.
Também são ocultadas comparações do Irã com outros países islâmicos, que desmontariam a imagem de retrógrado. Nesse sentido, é emblemática a questão das mulheres, pois no Irã elas correspondem a 60% dos estudantes de ensino superior, podem dirigir automóveis, ter seu próprio negócio, pedir divórcio – direitos negados às mulheres em países como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes, aliados dos Estados Unidos na política internacional. Mesmo o uso obrigatório do véu é menos rígido no Irã, que consiste em cobrir apenas a cabeça, mesmo que com lenços frouxos, como é comum encontrar nas ruas de Teerã.

Outro procedimento utilizado para a construção da imagem negativa do Irã é decorrente da proximidade com países do Oriente Médio, que provoca subentendidos que não são desmentidos pela mídia ocidental. Assim, violações dos direitos humanos ocorridas no Iraque e no Afeganistão, bem como a ação de grupos extremistas na Palestina e em Israel, são erroneamente atribuídas aos iranianos, o que leva muitas pessoas, até mesmo professores da Universidade, a nos perguntar sobre os homens-bomba do Irã. Ora, não há registro de homens-bomba iranianos.
Também não se usa burca no Irã. Diferente do que fizeram os talibãs com as imagens de Buda, no Irã há um elevado senso de preservação de monumentos históricos, como é possível constatar com a manutenção dos palácios dos próprios Pahlevi ou dos sítios arqueológicos de Persépolis. A cidade de Isfahan é uma experiência monumental viva da dinastia safávida.
Outro elemento a ser levado em conta é a diáspora iraniana. Emigrantes iranianos, em geral, tendem a valorizar a cultura de seu país de origem. No entanto, há aqueles que obtêm lucro com a imagem de haverem fugido de um lugar atrasado e não civilizado e que ocidentalizam sua escrita. É o caso de uma não rara literatura ressentida, cujo nome maior é o de Azar Nafisi, que em apenas duas linhas das 422 páginas de seu best seller Lendo Lolita em Teerã cita a importante personagem histórica Mohammad Mossadegh como um “antigo herói nacionalista”.

Assim, não se trata, de modo algum, de defender o atual regime iraniano. No entanto, com pesquisas financiadas pela Fapesp, pela Capes e pela Pró-Reitoria de Pesquisa da USP, conhecemos um país surpreendente em vários sentidos, com uma efervescente vida cultural e uma população que toma as ruas e praças com vivacidade. Que justiça seja feita a seu povo e à sua história milenar, que legou à humanidade, dentre tantas outras coisas, o primeiro código de direitos humanos, o Cilindro de Ciro, hoje exibido no British Museum, em Londres.

Daniel Marcolino, pesquisador em filosofia, educação e cinema, é mestre em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP com a dissertação “A diluição da autoria na Trilogia de Koker, de Abbas Kiarostami”
Ferdinando Martins é professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, vice-diretor do Teatro da USP (Tusp) e coordenador do Programa USP Diversidade. Atualmente realiza a pesquisa “Interdição e Produção Simbólica: a Censura ao Cinema e ao Teatro na República Islâmica do Irã”, financiada pela Fapesp e pela Pró-Reitoria de Pesquisa da USP.

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